De fato, “o futuro não é mais como era antigamente”, como cantou a Legião Urbana. Nossos horizontes temporais estão sendo radicalmente transformados pelo frenesi contemporâneo que nos espreme entre o último tuíte e o próximo deadline: neste mundo imediatista, repleto de presenças evanescentes e famas que duram 15 segundos no Insta ou no TikTok, a questão que não se pode calar foi formulada por Jonas Salk: “estamos sendo bons ancestrais?” O que dirão de nós aqueles que ainda não nasceram quando forem avaliar a qualidade de nosso legado?
O novo imperativo categórico, pós-kantiano e oportuno pro Antropoceno, consiste em perguntar: as futuras gerações vão olhar para esta geração que nós integramos e sentirão o quê, ódio mortal por nossa sacanagem ou gratidão pelos benefícios que lhes legamos? Os que ainda estão por nascer vão se enfurecer conosco por aquilo que estamos fazendo aqui-agora com as condições para o florescimento da vida no planeta, ou estes pósteros poderão nos agradecer pelo mundo imaculado que estamos lhes entregando? Todos os índices apontam para nossa atual sina como péssimos ancestrais, sonâmbulos morais, mas será ainda tarde demais?
“São 3h23 da madrugada
E não consigo dormir porque
Meus tataranetos me perguntam
nos meus sonhos: o que você fez
enquanto a Terra estava se desfazendo?”
Drew Dellinger
Enquanto as incertezas sobre nosso futuro coletivo se adensam, como nuvens carregadas de trovões e relâmpagos, diante da iminência do exacerbamento do aquecimento planetário e dos fluxos migratórios emergenciais, diante de novas pandemias zoonóticas e ameaças de guerra nuclear, parece que buscamos em massa o pseudo-remédio do imediatismo. Até porque pensar muito no amanhã tornou-se uma atividade ansiogênica, um perigo de adoecimento psíquico. Quem pensa no mundo de 2090, ou de 2190, orientado pelos últimos achados científicos (como os relatórios do IPCC) e pela comunicação autêntica realizada pelos mais competentes jornalistas (de Brum a Monbiot) corre o risco de deprimir-se e sentir-se tentado a aderir aos Prozacs e Rivotrils que a Indústria dos Fármacos tanto nos receita e nos incita a consumir.
Diante de tais perigos e angústias, parece que voluntariamente nos encarceramos na Caverna, na Matrix, na Bolha de Zap do imediatismo, do presentismo sem raízes nem visada pro porvir. É esta a conjuntura encarada por um dos mais importantes pensadores contemporâneos, o filósofo australiano e fundador da School of Life, Roman Krznaric.
Publicado pela Zahar, este The Good Ancestor é um livro mais do que necessário para “questionarmos os perigos do pensamento a curto prazo e desenvolvermos resiliência diante de um futuro muito incerto. Fazendo escolhas sábias – e de longa duração – neste tempo de crise, poderíamos de fato nos tornar os bons ancestrais que as futuras gerações merecem”, conta-nos o autor em seu prefácio, redigido em Oxford, no mês de março de 2020, em meio à erupção da pandemia de covid19 que pôs o planeta na “feroz urgência da crise” (p. 9-10).
A TIRANIA DO AGORA – Ora, não é pra pregar o despezo pelo agora, o colapso de qualquer epicúreo carpe diem, que estamos aqui falando de uma “tirania do agora”: o autor, em magistral obra anterior, expôs com brilhantismo a ética do Carpe Diem, suas raízes e mutações históricas, criticando o sequestro que o capitalismo consumista e imediatista realizou desta ancestral sabedoria que norteou o Jardim de Epicuro, a poesia de Lucrécio, vertentes do Renascimento e o Iluminismo, para vir desaguar em sábios-de-hoje como André Comte-Sponville. É evidente que há sabedoria em habitar o agora, mas não quando este é vivenciado em desconexão com o devir temporal, no esquecimento voluntário do tempo ido e no desprezo proposital pelo tempo vindouro. “Vivemos numa era de predomínio patológico do pensamento de curto prazo”, aponta o autor:
“Os políticos mal conseguem enxergar além da próxima eleição ou da última pesquisa de opinião ou de um tuíte. As empresas são escravas do próximo relatório trimestral e da constante exigência de aumentar o retorno para os acionistas…. Em conferências internacionais, concentradas em seus interesses de curto prazo, nações se reúnem em mesas de discussão enquanto o planeta pega fogo e espécies desaparecem. Nossa cultura de gratificação instantânea nos leva a nos exceder no consumo de fast food, no envio de mensagens de texto rápidas e no uso do botão ‘Compre Agora’… Esta é a tirania do agora.
(…) Séria é a possibilidade de um colapso civilizacional devido à nossa persistente destruição dos sistemas ecológicos de que nosso bem-estar e a própria vida dependem. À medida que continuamos a extrair combustíveis fósseis impensadamente, a envenenar nossos oceanos e a destruir espécies num ritmo que equivale ao de uma sexta extinção, a perspectiva de impactos devastadores torna-se ainda mais próxima. Em nossa era hiperconectada, essa ameaça existe agora em escala mundial; não há um planeta B para onde correr…” (KZRNARIC: 2021, p. 14-16)
“NÃO HÁ PLANETA B” – A tirania do agora pode acabar legando aos vindouros um planeta invivível, onde uma nova face do apartheid se erguerá em meio aos escombros do “Estado democrático de direito”: o neo-fascismo ecocida praticará o apartheid climático que consiste em privilégios injustos para milionários e vida indigna com morte-em-massa para a legião de humilhados e ofendidos. Neste horizonte de porvir tão distópico, quem ousará falar, desde já, pelos ainda não nascidos? Quem hoje ousará expor a colonização do futuro denunciada por Krznaric e conexa à “miopia temporal” hoje tão disseminada e pervasiva?
“Colonizamos o futuro. Tratamos o futuro como um posto avançado colonial distante, desprovido de pessoas, onde podemos despejar livremente degradação ecológica, risco tecnológico e lixo nuclear, e que podemos saquear à vontade. (…) A tragédia é que as gerações ainda não nascidas nada podem fazer com relação a essa pilhagem colonialista de seu futuro. Elas não podem se jogar na frente do cavalo do rei como uma sufragista, bloquear uma ponte no Alabama como um defensor dos direitos civis ou empreender uma Marcha do Sal para desafiar seus opressores coloniais como fez Gandhi. Não possuem nenhum direito político ou representação, não têm nenhuma influência nas urnas ou no mercado. A grande maioria silenciosa das futuras gerações fica impotente e é apagada de nossa mente.” (p. 17)
Poucos territórios deste teatro-mundo – mais parecido como um hospício esférico, como dizia Mafalda, tamanho o número de terraplanistas e bolsonaristas que há nele! – encarnam tanto quanto o Brasil as catastróficas consequências da camisa-de-força do imediatismo. Em 2018, com investimento massivo de capital ilegal, injetado por caixa 2 no “mercado do Zapistão”, a enxurrada de fake news e a tsunami de “demagogia digital” alçaram ao poder um dos piores inimigos do planeta e sua biosfera na atualidade. Jair Bolsonaro não é só inimigo do povo brasileiro, ele é um atentado ambulante contra o futuro dos biomas e dos povos que são seus guardiões, a encarnação quase caricata, num paroxismo da vilania, de tudo que um babaca desprovido de uma gota de sabedoria pode fazer para tornar-se um aniquilador da sociobiodiversidade e um péssimo ancestral.
O horrendo desgoverno de Bolsonaro e seus milicos uniram-se ao coronavírus para promover uma mortandade em massa que não salvou economia nenhuma, tendo unido a isto outras delinquências de ecocídio e etnocídio que ainda prosseguem impunes. Perguntar a fascistas truculentos como os bolsonaristas o que eles pensam sobre o bem-estar das futuras gerações em um planeta sustentável, ecologicamente equilibrado, onde a justiça intergeracional seja valor norteante, seria obviamente similar a instigá-los com um pano vermelho similar ao que faz o touro sacar seus chifres, furioso; eles vão correndo ao coldre para empunhar seus revólveres. Não querem saber de questionamentos de esquerdopatas. Esta extrema-direita tacanha, que não sabe nem mesmo ter empatia por seres humanos atuais, teria empatia pelos vindouros e piedade pelos não-nascidos? Não, estão muito ocupados lucrando com milicianatos e fervendo em fogo alto a possibilidade de termos um futuro.
Precisamos de um antídoto radical a necropolíticas-sem-futuro como o Bolsonarismo, esta expressão do capitalismo em estado de necrose, esta doença do neoliberalismo autoritário chegando em sua fase palhaço-sádica.
Precisamos de uma política e de uma ética que nos capacite a ter empatia que atravesse o tempo, que transborde do agora e abrace outras épocas. Oprimidos de outrora e de amanhã abraçados por nosso sentir-com. Sobretudo precisamos desenvolver, sobre o alicerce desta empatia expandida, um senso de urgência diante da extinção de espécies e do colapso ambiental que hoje vivemos, instalando em nosso hardware organísmico um software que rode o programa de 6 maneiras de pensar a longo prazo: humildade diante do tempo profundo; mindset de legado; justiça intergeracional; pensamento de catedral; previsão holística; meta transcendente (parte 2, pgs. 47 a 151). Step into the shoes of future generations! É este o ímpeto que anima a obra do autor do também crucial O Poder da Empatia:
“I spent most of my life thinking about empathy. How do we step into the shoes of people who are alive today but living on the social margins? And then I thought what we really need to do is step into the shoes of future generations. Never before have our actions had such huge potential impact on their lives. We need to learn to empathise through time.”
COMO RÃS NA PANELA – É curiosa a maneira como vertentes scifi (de H.G. Wells a Stapledon) vêm alimentar o caudaloso rio textual de Krznaric. Enquanto futurólogo, tecendo sua ficção especulativa, ele acaba nos propondo metáforas poderosas, dignas de um visionário da science fiction, aptas como ferramentas para pensar nossa condição. Parece-me que o autor realiza variações inventivas sobre o tema da cegueira moral, do sonambulismo moral, fenômenos muitos explorados também por Bauman, Saramago/Meirelles (Ensaio Sobre a Cegueira), e por toda a tradição filosófica budista destinada a compreender os porquês dos véus de Maia e das avýdias.
Em uma dessas metáforas, seríamos como rãs numa panela que esquenta aos poucos, e que estariam tão acorrentadas à tirania-do-agora que, quando o bagulho começa a ferver, não conseguem pular fora da panela! Por isto, com cáustica ironia, o autor diz: ETs malévolos que quisessem destruir a espécie homo sapiens fariam algo bem diferente do que enviar ETzinhos verdes com arminhas laser para nos reduzir a cinzas.
“Em vez disso, inventariam algo como o aquecimento global, que iria escapar sorrateiramente do radar do cérebro humano porque nós não somos bons para agir em resposta a ameaças de longo prazo. Embora saiamos depressa do caminho de uma bola de beisebol que vem em disparada rumo à nossa cabeça, somos muito menos hábeis para lidar com um perigo que chegará daqui a vários anos ou décadas. (…)
Uma das razões pelas quais não tomamos medidas eficazes numa questão como as mudanças climáticas – por ex., por meio de investimento maciço de longo prazo em energia renovável ou impostos punitiviso sobre o carbono – é que a maioria das pessoas (especialmente no Ocidente) não a experimenta como uma crise severa como o Grande Fedor de Londres ou a Segunda Guerra Mundial. Os impactos são excessivamente graduais: como uma rã que é lentamente fervida em água cuja temperatura se eleva apenas gradualmente, o calor planetário está sendo elevado lentamente e não estamos saltando fora da panela. Mesmo o número crescente de desastres relacionados ao clima – de seca no Quênia a incêndios florestais na Austrália [e na Amazônia] – não foi danoso o suficiente para provocar a resposta séria que se faz necessária.
“Nossa casa está pegando fogo”, disse a ativista Greta Thunberg ao Fórum de Davos, Suíça, em 2019, “eu não quero a esperança dos senhores, quero que entrem em pânico… e ajam!” Gerar uma genuína consciência de crise e emergência pode ser o antídoto mais eficaz para nosso sonambulismo moral rumo ao colapso civilizacional.” (KRZNARIC, op cit, p. 35 – 123)
IMAGINANDO FUTUROS – Para além da cisão entre utopias e distopias, vale a pena refletir sobre o valor da prática de imaginar futuros, de criar narrativas descrevendo possíveis porvires, sejam eles idílicos ou cataclísmicos. Para Krznaric, para além da onda questionável de blockbusters catastróficos e apocalípticos, que transformam a destruição em entretenimento, a exemplo de O Dia Depois de Amanhã de Roland Emmerich, temos uma profusão de “tentativas sérias e reflexivas de explorar futuros possíveis”, a exemplo de O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) de Atwood e Children of Men de P. D. James, ambos geradores de obras audiovisuais conexas (uma série da Hulu, no primeiro caso, e um filme de Alfonso Cuarón, no segundo).
Pesquisadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no artigo The future imagined: exploring fiction as a means of reflecting on today’s Grand Societal Challenges and tomorrow’s options (2016),
“analisaram os temas dominantes em 64 dos filmes e romances de ficção científica mais influentes ao longo dos últimos 150 anos, variando de Nós, de Zamiátin, e Metrópolis, de Fritz Lang, até A curva do sonho, de Ursula Le Guin, e Avatar, de J. Cameron. Em 27% da amostra, a tecnologia se tornou uma ferramenta para manipulação e controle social. A destruição do mundo vivo apareceu em 39% dos livros e filmes, e a aguda escassez de alimentos foi um tema em 28%, ao passo que 31% continham movimentos de resistência para combater sistemas políticos opressivos e extrema desigualdade.” (p. 237)
A ficção especulativa de pendores futuristas, em muitos casos, atua à maneira das cautionary tales, ou seja, opera como um
“sistema precoce de advertência que nos envolve ativamente com os riscos da tecnologia ou da exploração de recursos muito mais eficazmentes que as análises desapaixonadas dos cientistas ou os longos relatórios governamentais. Eles podem nos politizar, nos socializar e nos alterar. Segundo os autores, a ficção científica tem a capacidade de ‘falar sua verdade ao poder’ e promover ‘uma ética de precaução e responsabilidade’.” (p. 238)
Elogiando trabalhos como os de Kim Stanley Robinson, de Olaf Stapledon ou de Ernest Callenbach, o livro Como Ser Um Bom Ancestral funciona também como um grande guia de futurologia pertinente, capaz de debater em alto nível fenômenos como ciborgues, I.A., transhumanismo e outros. Em relação às utopias, ou seja, à forja de visões de uma “sociedade ideal a que podemos aspirar”, o autor vê com bons olhos algumas vertentes do “utopismo social” como produtores de um pensamento de longo prazo de que estamos urgentemente necessitados, mas faz algumas ressalvas:
“Não existiria nenhum organização antiescravista, nenhum sindicato, nenhuma sufragista, nenhum movimento anticolonial e nenhum Estado de bem-estar social sem essas visões utópicas que desafiaram as suposições e crenças de seus tempos e pintaram um quadro de um mundo melhor como uma meta de longo prazo pela qual lutar. (…) Contudo, aspirantes a bons ancestrais deveriam desconfiar de utopias sociais que foram formuladas antes que entrássemos na época do colapso ecológico o Antropoceno ocorrido no fim do século XX. O potencial derretimento do lençol de gelo da Groenlândia simplesmente não estava no radar de antigos pensadores utópicos como Karl Marx, Charles Fourier, William Morris e Thomas More. Geralmente, seu pensamento de longo prazo não tinha consciência da fragilidade dos sistemas que suportam a vida na Terra. Há, entretanto, algumas exceções, como o anarquista do século XIX Piort Kropotkin, cujos escritos exibem uma arguta consciência ecológica.” (KRZNARIC, p. 158)
Por Eduardo Carli de Moraes
A ser continuado
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Publicado em: 29/04/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Não conhecia. Parece ser uma boa chave para dar substância mais forte para a ideia de ancestralidade…
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Marcos Carvalho Lopes
Comentou em 06/08/22